O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, estava sob pressão no fim do ano passado. O chefe da Casa Civil, Rui Costa, e a presidente do PT, deputada Gleisi Hoffmann, queriam que o governo desistisse da meta de déficit zero em 2024, fixada por Haddad, alegando que esta — considerada draconiana demais pelos petistas — poderia provocar cortes em investimentos e programas sociais. Em dezembro, o PT aprovou uma resolução em que, mesmo sem citar o ministro e o objetivo fiscal traçado por ele, deixava clara a sua insatisfação: “O Brasil precisa se libertar, urgentemente, da ditadura do Banco Central ‘independente’ e do austericídio fiscal, ou não teremos como responder às necessidades do país”. O próprio presidente Lula fazia parte desse coro quando afirmava que a meta dificilmente seria cumprida e que não começaria o ano “fazendo corte de bilhões de reais” em projetos prioritários só para alcançá-la. O lobby era poderoso e empunhava a surrada — e reprovada — bandeira por mais gasto público. Ciente do cerco, Haddad resolveu conversar com o chefe. Deu certo, e o plano fiscal dele ganhou uma sobrevida.
Com prestígio em alta com o presidente em razão do avanço da agenda governista no Congresso e a melhora de uma série de indicadores econômicos, Haddad convenceu Lula a adiar o debate sobre a revisão da meta de déficit zero para março de 2024. Alegou que antes de qualquer mudança era necessário ver o comportamento da arrecadação e da despesa no início deste ano. Afirmou ainda que essa precaução manteria a credibilidade da política econômica. A estratégia rendeu o fruto esperado pelo ministro. Na sexta-feira 22, o governo anunciou que a meta está sendo respeitada e, por enquanto, será mantida. Não houve chiadeira do PT nem dos principais opositores do ministro dentro do partido. Haddad venceu mais um round na disputa, mas a questão ainda não está definitivamente resolvida. Primeiro, porque o problema das contas públicas continua grave e tende a piorar. Segundo, porque Lula pode se render ao receituário de Rui Costa, Gleisi e companhia caso o governo não consiga reverter o desgaste de popularidade, retratado nos atos esvaziados convocados pela esquerda em resposta à apinhada manifestação a favor de Jair Bolsonaro realizada, em fevereiro, na cidade de São Paulo.
Segundo uma leva de pesquisas, a aprovação ao trabalho do presidente e ao governo caiu nos últimos meses, a ponto de empatar com a reprovação. Apesar da melhora de indicadores como emprego e renda, também foi detectado um aumento do pessimismo e da avaliação negativa da população com a economia. No Palácio do Planalto, parte do problema é creditada à comunicação, que não estaria destacando as supostas conquistas da atual administração. Entre petistas, chegou-se a culpar o próprio eleitorado, que não estaria reconhecendo os méritos do governo. Por enquanto, Haddad não dá sinais de que pretende se curvar à pressão dos colegas de partido. “Quando a política econômica do governo é consistente, pragmática e responsável, não são as expectativas do mercado que a guiam, é ela que guia as expectativas do mercado”, disse na última reunião ministerial.
Alvo de fogo amigo desde que assumiu o cargo, o ministro sabe do tamanho do desafio. Para que a pressão por mais gastos continue debelada, ele aposta no crescimento da economia, que pode ser estimulado com a melhora do ambiente de negócios e a aprovação de projetos, com destaque para a regulamentação da reforma tributária e de pontos relacionados à transição energética. No ano passado, o ministro capitaneou as negociações com o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), que resultaram na aprovação de itens importantes da agenda econômica, como o novo marco fiscal e a reforma tributária. Os dois estabeleceram uma boa relação institucional, que tende a ser mantida neste ano. Não à toa, ao anunciar o bloqueio de 2,9 bilhões de reais no orçamento de 2024, a equipe econômica poupou as emendas parlamentares. Outra aposta do ministro para continuar segurando a rédea da gastança é a revisão permanente das despesas públicas, tocada pela equipe da ministra do Planejamento, Simone Tebet.
Esse pente-fino nos gastos já resultou em economia, por exemplo, na área da Previdência Social. São ações pontuais, mas que podem render dividendos enquanto o PT resiste a mexer no vespeiro principal: a reforma administrativa. “Só temos uma alternativa: rever os gastos, porque pelo lado da receita já se exauriram todas as cartas na manga do ministro Haddad”, diz Simone Tebet. Os embates entre Haddad e colegas de partido começaram tão logo ele tomou posse na Fazenda. No primeiro duelo, ainda em janeiro de 2023, sobre a reoneração ou não dos combustíveis, o ministro saiu derrotado. Na época, Lula concordou com Rui Costa e Gleisi Hoffmann, para quem reajustar o preço da gasolina, logo no início do novo governo, seria uma tremenda falta de sensibilidade política. Meses depois, a reoneração foi feita — sem aumento do preço nas bombas, como gosta de repetir Haddad.
Desde então, o ministro colheu vitórias, aumentou seu prestígio, sobretudo fora do PT, e expandiu sua área de atuação, fazendo as vezes de articulador político com o Legislativo e de negociador de causas bilionárias no Judiciário. Recentemente, foi contemplado com o direito de indicar um nome para integrar o conselho de administração da Petrobras. A iniciativa foi tomada depois que a empresa, seguindo orientação dos ministros Rui Costa e Alexandre Silveira (Minas e Energia), decidiu não pagar dividendos extras, o que fez a petrolífera perder valor de mercado e, ao mesmo tempo, aumentar o temor de intervencionismo do governo em companhias de capital aberto. Diante da repercussão do caso, Lula convocou uma reunião para tratar do tema, chamou Haddad para participar e lhe deu uma vaga no conselho de administração da Petrobras. Após a reunião, Haddad deixou claro que o pagamento dos dividendos extras ainda pode ocorrer, desde que não comprometa o plano de investimentos da Petrobras. A declaração funcionou como água na fervura.
A demonização do mercado, tão presente nos discursos de petistas, não consta da cartilha do chefe da equipe econômica. E ele, sim, colhe dividendos por isso. Pesquisa Genial/Quaest com representantes de uma centena de fundos de investimentos mostrou que a avaliação negativa do governo Lula subiu de 52% em novembro de 2023 para 64% em fevereiro passado. No mesmo período, a avaliação positiva de Haddad passou de 43% para 50%. Os embates entre o ministro da Fazenda e petistas estrelados não se resumem a questões como tributação de combustíveis e meta fiscal. Em entrevista à CNN Brasil, Haddad contou que foi feito até um bolão no PT sobre até quando ele resistiria no cargo. Essa rixa tem como pano de fundo uma disputa de poder — e, mais especificamente, a sucessão de Lula. Haddad, Gleisi e Rui Costa nutrem o sonho de disputar a Presidência. Hoje, o ministro da Fazenda é considerado o favorito para suceder Lula se e quando o mandatário decidir se aposentar das urnas. Essa posição, no entanto, não está consolidada e depende de um bom desempenho da economia. Segundo Haddad, o objetivo de promover crescimento com inclusão social só será alcançado com uma política responsável, cuja execução exige dele coragem para comprar brigas com o PT e contestar visões ultrapassadas até do próprio chefe. Até aqui, o ministro, um sobrevivente na banca de apostas, tem driblado os obstáculos.
Publicado em VEJA de 29 de março de 2024, edição nº 2886